Por: Heloisa Lee Burnquist
“O açúcar está em alta no mundo e essa é uma ótima notícia para o Brasil, que é o maior produtor e exportador mundial do produto. Com o aumento da demanda, o País pode aproveitar para colher os frutos dessa recuperação e se posicionar como um líder na transição energética. Para isso, é importante que o Brasil aproveite as oportunidades que se apresentam, especialmente na forma de investimentos estrangeiros. O País tem um setor sucroenergético forte e com um perfil alinhado às alternativas para a produção de energia renovável”.
Nos últimos anos, produtores de açúcar enfrentaram quedas recorrentes nos preços, provocadas por aumentos na oferta. A geração de excedentes derrubou as cotações do contrato de açúcar número 11 na Bolsa de Nova York (ICE Futures), que operou abaixo de 11 centavos de dólar por libra-peso (ou US$ 242,508/tonelada) nos anos de 2015, 2016, 2018 e 2020. Esse cenário causou turbulência no mercado do açúcar.
No entanto, há sinais de esperança no horizonte. A safra atual evolui em novo cenário. Está animadora para o setor sucroenergético, com o preço do açúcar em alta nos mercados internacionais, apresentando tendência para se manter acima de 27 centavos/libra-peso (US$ 595,247/t), possivelmente também no próximo ano. Com essa reviravolta importante, vamos analisar os fatores impulsionando essa mudança e seus possíveis impactos.
O açúcar é um produto essencial, cujo alcance se estende muito além dos limites dos armários de nossas cozinhas. Desempenha um papel crucial na indústria alimentar, presente em aproximadamente 80% dos alimentos processados e numa impressionante variedade de mais de 100 mil diferentes produtos, segundo estimativas apresentadas pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). No entanto, não se trata apenas de satisfazer nossa vontade de comer doces. O açúcar também deixa sua marca em produtos de higiene pessoal, medicamentos, produtos para animais de estimação, cosméticos, produtos químicos e corantes industriais. Sua versatilidade não tem limites.
Ao contrário de outros produtos, como a soja, a procura de açúcar está espalhada por vários países. Enquanto a soja é usada principalmente como fonte de proteína e óleo, o açúcar tem um apelo mais universal como fonte barata de energia. É uma necessidade básica que gera uma infinidade de empregos, especialmente nos países em desenvolvimento, onde é produzido a partir da cana. Com cerca de 110 países envolvidos na produção de açúcar, os desafios de coordenação da produção e dos preços são grandes. Felizmente, a existência de mercados de futuros robustos, como a venerada Bolsa de Nova York, proporciona consolo. O seu poder de internalizar os choques globais de preços capacita os países produtores de açúcar a enfrentarem as tempestades que ameaçam as suas doces ambições. Esta interligação global também significa que os países fortemente dependentes das exportações de açúcar são vulneráveis aos choques internacionais nos preços. O Brasil, por exemplo, funciona como um importante player no mercado mundial de açúcar. Apesar do seu tamanho e influência, o País está sujeito aos caprichos dos preços internacionais. Sem um fato novo definir uma mudança estrutural nesse mercado, nada impede que, de dois a três anos, os preços voltem aos baixos níveis de 2020.
A diferença entre oferta e demanda no mercado mundial na presente temporada parece baixa para um aumento tão expressivo nos preços, sugerindo que, ao contrário do que se diz, o mercado internacional de açúcar não é “tão bem consolidado e relativamente estável”. A ISO (Organização Internacional do Açúcar) estima um consumo em 2023/24 da ordem de 176,9 milhões de toneladas, contra uma produção de 174,84 milhões de toneladas. A reviravolta veio, portanto, de uma queda na produção em relação ao consumo nas últimas temporadas mundiais, que deve resultar em um déficit de 2,118 milhões de toneladas. Além do déficit entre produção e consumo global, acredita-se que a demanda por importação, de 64,373 milhões de toneladas, supera a disponibilidade para exportações, estimada em 61,559 milhões de toneladas.
Faz todo sentido considerar que, no caso brasileiro, a demanda internacional é tão importante ou até mais que a do mercado interno na definição do patamar de preços no nosso mercado. O País exporta de 35 a 38% do comércio global de açúcar, um volume bem acima do consumo doméstico. Este último não é baixo, vem se mantendo próximo a 10 milhões de toneladas, o que o posiciona como o segundo maior país consumidor de açúcar, depois da Índia. Na presente safra, o Brasil deve produzir 40 milhões de toneladas de açúcar, de forma que a sua exportação atenderia quase metade da demanda mundial por importação de açúcar. Como o mercado interno absorve um volume menor que o do externo, mudanças nos preços do açúcar no mercado internacional afetam a indústria açucareira brasileira de maneira mais expressiva.
Outro aspecto importante é que o mercado de açúcar está cada vez mais suscetível a um conjunto mais amplo de direcionadores que os “tradicionais” para produtos agroindustriais. É relativamente fácil interpretar e prever mudanças de curto prazo nos preços de açúcar, em função de variações no câmbio, chuvas, na realização de lucros pelos operadores, no preço de etanol no Brasil, preço do petróleo, dentre outros fatores “normais” de curto prazo.
A identificação de um patamar para os preços de açúcar no mercado global já é mais difícil. Depende de aspectos como a maior velocidade com que as políticas governamentais e acordos comerciais buscam atingir metas para reduzir os impactos sobre o ambiente e a biodiversidade, dificultando a previsão de mudanças nas tendências dos preços. Países protagonistas no mercado internacional pela eficiência e competitividade, como é o caso do Brasil, ficam sujeitos aos efeitos perniciosos dos subsídios à produção e exportação, além de tarifas à importação, empregados de forma cada vez mais frequente no mercado do açúcar, que continua sendo um dos historicamente mais protegidos. Sem uma governança multilateral efetiva, os estímulos à proteção agrícola têm sido retomados a todo vapor, particularmente pelos países mais ricos, amplamente justificados pela emergência climática e posturas mais nacionalistas, de proteção a emprego e autossuficiência alimentar.
A conformidade ambiental para a importação de açúcar tornou-se mais rigorosa, com consumidores exigindo produtos mais sustentáveis e os governos enfatizando medidas para proteger o ambiente. Cientes destas exigências, os importadores vêm sendo cada vez mais seletivos quanto às suas fontes.
Para os exportadores, o aumento dos custos de produção representa outro desafio. Além dos combustíveis e fertilizantes mais caros, a necessidade de mudanças nos sistemas produtivos para atender às novas exigências relacionadas às mudanças climáticas eleva os custos de adequação no campo e na indústria, treinamento de mão de obra, novos modelos de gestão e equipamentos, que podem pressionar a competitividade brasileira de açúcar, pelo menos no curto prazo.
Afora os requisitos gerais, alguns países também impõem exigências específicas. Por exemplo, a União Europeia tem uma série de requisitos para os importadores de açúcar, incluindo alguns para a utilização de energias renováveis e a proteção da biodiversidade. Os Estados Unidos passaram a exigir que os importadores de açúcar locais obtenham a commodity de produtores que cumpram o Programa de Cana-de-Açúcar Sustentável. Este programa norte-americano estabelece padrões para a produção sustentável de cana-de-açúcar, incluindo para uso de água, emissões de gases de efeito estufa e desmatamento. A Índia exige que os importadores de açúcar obtenham a commodity de produtores que cumpram a Lei Indiana de Desenvolvimento e Regulamentação da Cana-de-Açúcar, que estabelece padrões para a produção sustentável de cana, incluindo para uso de água e conservação do solo.
A despeito dessas dificuldades em ebulição no mercado de açúcar, a indústria brasileira da cana cresce, confirmando sua resiliência às mudanças na dinâmica do mercado global, graças à capacidade de visionários que introduziram, a princípio, o etanol como produto conjunto ao açúcar quando o mercado dessa commodity se desintegrava nos anos 80. Atualmente, nessa mesma linha, a indústria brasileira de açúcar está se diversificando, investindo em novos produtos, como o etanol celulósico, o biogás e o hidrogênio, como novas fontes de renda que devem mitigar impactos negativos para o ambiente e proporcionar condições para o crescimento do setor. A gama de produtos é ampla e só tem aumentado, compreendendo:
• Bagaço de cana: é um subproduto da produção de açúcar e etanol. Pode ser utilizado para gerar energia elétrica, biogás, ou para a produção de outros produtos, como papel, plástico e ração animal.
• Biomassa: é a matéria orgânica que pode ser usada para gerar energia. No setor sucroenergético, a biomassa pode ser obtida a partir do bagaço de cana, da palha da cana, ou de outros resíduos agrícolas.
• Açúcar orgânico: é produzido a partir de cana-de-açúcar cultivada sem o uso de agrotóxicos ou fertilizantes sintéticos. O açúcar orgânico é um produto de nicho, mas tem crescido em popularidade nos últimos anos.
• Vinhaça na adubação: é um fertilizante rico em nitrogênio, fósforo e potássio. Pode ser usada para fertilizar plantações de cana-de-açúcar, ou para outras culturas agrícolas. A vinhaça pode ser usada para produzir biogás, um biocombustível que pode ser usado para gerar energia elétrica ou térmica.
• Produção de produtos químicos: a vinhaça pode ser usada para produzir uma variedade de produtos químicos, como etanol, ácido sulfúrico e ureia.
• O E2G e o hidrogênio: são fontes de energia renováveis e sustentáveis, que não emitem gases de efeito estufa. No entanto, é importante ressaltar que a produção de E2G e hidrogênio ainda enfrenta alguns desafios, como o custo de produção e a eficiência do processo. O setor sucroenergético brasileiro está trabalhando para superar esses desafios, e para tornar a produção de E2G e hidrogênio mais competitiva.
A recuperação do mercado global de açúcar é, portanto, sem sombra de dúvida, uma excelente notícia para o Brasil, que é o maior produtor e exportador mundial de açúcar. O País está pronto para aproveitar essa oportunidade, mas precisa agir rápido para captar investimentos estrangeiros e se posicionar como um líder na transição energética. Mais um ponto a favor do sucroenergético, proporcionando condições para que o Brasil venha a se posicionar como líder na transição energética, um dos principais desafios do século XXI.
Heloisa Lee Burnquist é Professora da Esalq/USP e pesquisadora do Cepea