Por: Aline Locks
Em qualquer economia, o crédito é um combustível fabuloso. Países desenvolvidos estimulam a concessão de financiamentos a cidadãos e empresas, para que esses recursos impulsionem a roda positiva dos negócios, com a criação de oportunidades, empregos e, consequentemente, riqueza.
O crédito é também um direcionador dessas economias. Abrir a torneira para um determinado setor representa acelerar o seu crescimento. Por outro lado, quando o tanque dos financiamentos seca para uma atividade, a tendência é de estagnação e paralisação da engrenagem.
No Brasil, não é diferente. O crédito por aqui sempre foi artigo escasso e caro e, por isso, por muitas décadas nossa economia patinou. Apenas alguns setores, estimulados por programas especiais de incentivo financeiro, avançavam em ritmo mais alto.
As últimas duas décadas começaram a mudar esse cenário. Inflação domada e juros em queda permitiram mais acesso a recursos. No início dos anos 2000 o saldo das operações de crédito representava cerca de um quarto do PIB. Em 2013, ultrapassou a marca dos 50% pela primeira vez e hoje está na casa dos 58%, segundo dados da Associação Nacional dos Birôs de Crédito.
É um salto importante, mas ainda é pouco. Usando uma métrica diferente, o Banco Mundial compara a relação crédito/PIB em vários países e demonstra o quanto ainda precisamos caminhar. Segundo o indicador utilizado pelo banco, o crédito doméstico ao setor privado brasileiro atingiu 70% do PIB em 2020. Nos Estados Unidos, sempre uma referência de desenvolvimento, o volume emprestado é proporcionalmente o triplo, chegando a 216% do PIB. Se a comparação parece desleal, vejamos o dado do Chile: 124%.
Índices mais altos apontam que há mais dinheiro sendo colocado a risco e mais gente assumindo o risco de empreender, produzir e adquirir bens. Significam incluir um número maior de pessoas e empresas na roda positiva da economia. Inclusão, assim, se transforma em crescimento.
Não basta emprestar
O crédito rural tem suas peculiaridades, mas não contraria a lógica do mercado. Quanto mais dinheiro irrigar a atividade agropecuária no Brasil, mais produtores terão acesso a ele e maiores as chances de safras mais volumosas. Com dinheiro no caixa, o produtor investe em insumos, máquinas e tecnologia.
Dá para ver isso na prática. Nossas safras recordes nos últimos anos coincidem com quantias igualmente recordes aplicadas em financiamento de produção. Na safra 2021/22, as contratações de crédito rural atingiram R$ 293,4 bilhões, 19% acima do ano anterior e R$ 42 bilhões acima do previsto pelo Plano Safra para a temporada. Para a safra 2022/23, o plano prevê R$ 340 bilhões, um crescimento de 36%. É uma ótima notícia, mesmo levando-se em conta a inflação nos preços dos insumos.
Tão importante quanto o volume de recursos, no entanto, é o acesso a eles e a forma como são direcionados. Utilizar o combustível do crédito para acelerar a adoção de melhores práticas produtivas e socioambientais nas propriedades rurais, pode trazer um resultado mais efetivo do que apenas restringir o acesso a esse combustível.
Entra aqui a lógica do crédito como indutor da evolução dos sistemas produtivos. A fórmula de utilizar indicadores de desempenho socioambiental entre os critérios de análise de risco e crédito é, sabidamente, uma forma de chamar a atenção de produtores para a importância de se manter as propriedades rurais em conformidade com as normas trabalhistas e ambientais.
A questão é encontrar mecanismos que os façam perceber que compensa dar o primeiro passo e seguir na jornada de regularização dos seus empreendimentos rurais. Trata-se de um trajeto sinuoso e cheio de obstáculos. Exige tempo e investimento. Nem sempre é possível caminhar sozinho por ele.
Bancos, investidores e outros financiadores têm incluído a sustentabilidade em seus discursos e em suas demandas para a aprovação de crédito. Exemplo disso é uma proposta da SEC (Security Exchange Comission), a reguladora do mercado de capitais nos Estados Unidos, para que as empresas de alimentos passem a reportar as condições de produção nos seus fornecedores, secando o crédito a quem não estiver de acordo com normas ambientais vigentes. Na Europa, o excesso de exigências das políticas ambientais aos produtores tem provocado protestos em larga escala, iniciados na Holanda.
Também no Brasil, uma proposta de autorregulação em estudo na Febraban, entidade que reúne os principais bancos brasileiros, propõe restringir o crédito aos frigoríficos ligados ao desmate ilegal na Amazônia. Isso significa deixar de financiar aqueles que não conseguirem comprovar a rastreabilidade total da cadeia de fornecedores, do bezerro ao abate.
Compradores de outras commodities agrícolas sofrem pressões semelhantes e, em muitos casos, transferem-nas à sua cadeia de fornecimento. O ciclo da pressão se propaga, mas raramente vem acompanhado do incentivo. Quem não se adequa está fora do jogo e fica marginalizado. E aí, ao invés de incluir, o crédito com rótulo de sustentável torna-se um instrumento de seleção e exclusão, prejudicando muito mais os pequenos e médios produtores, que em sua maioria tem menor resiliência, levando a uma maior consolidação e concentração do mercado para os grandes players.
Tecnologia a favor
Alterar essa lógica para um sistema de inclusão é necessário e urgente. Assim como as fintechs têm ajudado a bancarizar milhões de pessoas nas cidades e a criação de um cadastro positivo abre a possibilidade de beneficiar aqueles com bom histórico de crédito, criar linhas de financiamento agrícola que premiem produtores responsáveis pode ser sim um estímulo real para a adequação das fazendas.
Com cada vez mais tecnologia de análise de risco e de crédito, instituições financeiras (tradicionais ou surgidas já no ambiente digital) conseguem hoje saber muito sobre uma propriedade rural.O sistema de crédito agrícola registra anualmente cerca de dois milhões de operações. Para cada uma são coletadas informações em cerca de 240 campos de dados, sujeitos a mais de 1 mil verificações.
Ajudar o produtor a compreender onde estão seus problemas e incentivá-lo a resolvê-los pode gerar um ambiente de mais segurança e confiabilidade, onde o risco menor gerará mais ganho a quem empresta e menores taxas a quem toma o crédito.
Aline Locks é engenheira ambiental, cofundadora e atual CEO da Produzindo Certo, solução que já apoiou a maneira como mais de 6 milhões de hectares de terras são gerenciados, através da integração de boas práticas produtivas, respeito às pessoas e aos recursos naturais. Liderou projetos com foco em inovação e tecnologia, como o 'Conectar para Transformar', um dos vencedores do Google Impact Challenge Brazil. Recentemente foi selecionada pela Época Negócios como um dos nomes inovadores pelo clima, é uma das 100 Mulheres Poderosas da revista Forbes e uma das líderes do agronegócio 2021/2022 pela revista Dinheiro Rural.