Por Mariana Monferdini
Cada dia mais, faz-se necessária uma visão ampla e sistêmica sobre todas as manifestações e práticas humanas, em relação ao clima e ao desequilíbrio em nosso planeta. O alimento é uma das principais fontes de vida para o ser humano, sendo fundamental pensar de que maneira nos relacionamos com este alimento, desde sua produção até o consumo final. As relações entre produção de alimentos e equilíbrio socioambiental estão diretamente interligadas.
Dados do Relatório Estatístico da FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, mostram que o valor agregado global gerado pela agricultura, silvicultura e pesca cresceu 84% entre os anos 2000 e 2021, chegando a 3,7 trilhões de dólares. Contudo, o mesmo documento estima que as perdas causadas em plantações e criações de gado por desastres ambientais tenham atingido – e até ultrapassado – esse montante entre 1991 e 2021, totalizando 3,8 trilhões de dólares.
Quando consultamos as informações da FAO sobre a prevalência da fome em nosso planeta, fica clara a gravidade desse impacto negativo, ocasionado também - entre diversas outras causas históricas - pelas mudanças climáticas, em um contexto em que ainda não temos alimentos em quantidade suficiente para todos: 9,2% da população mundial, equivalente a 735 milhões de pessoas, estavam passando fome em 2022, um acréscimo de 122 milhões em relação a 2019, antes da pandemia.
Entre aqueles que conseguem acesso à alimentação, ainda conforme a FAO, 3,1 bilhões, ou 42% da população, não conseguem pagar por uma dieta saudável, com alimentos nutricionalmente relevantes. Estudos mostram que esse é mais um efeito direto da instabilidade do clima na segurança alimentar, em um ciclo perverso. Ela afeta o acesso, a utilização e a estabilidade do sistema alimentar. Temos um quadro então de alta demanda, baixa oferta de alimentos saudáveis e altos preços, forçando o consumo de ultraprocessados e processados entre aqueles de baixa renda. Vimos isso acontecer recentemente no Brasil após as enchentes no Rio Grande do Sul, com o aumento nos valores dos alimentos então produzidos naquela região.
No mês passado, em encontro preparatório para a Cúpula de Líderes do G20, que acontece em novembro, no Rio de Janeiro, o governo brasileiro fez o pré-lançamento da Força-Tarefa para a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. O objetivo é reunir os países em um grande esforço para obter recursos financeiros e sinergia em conhecimentos para encontrar soluções eficazes de combate à fome e pobreza. Embora outros fóruns de debates mundiais, como a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, revelem o quão desafiador é unir interesses diversos em torno de questões que afetam a todos e traduzir isso em ações concretas, todo empenho é válido nesse sentido.
Caminhando nessa direção, a FAO propõe a criação de alternativas com o que denomina como “climate-smart agriculture” (CSA), ou, em tradução livre, agricultura climaticamente inteligente. A ideia é obter um cultivo de alimentos que seja mais resiliente às mudanças climáticas, ancorado em práticas agrícolas sustentáveis. Dessa forma, é possível proporcionar o aumento da produtividade e da renda, preservar o solo e as águas, dar maior resistência para os meios de subsistência e para os ecossistemas e reduzir a emissão dos gases de efeito estufa.
Entre as estratégias pensadas por diversos movimentos, estudiosos e militantes da segurança alimentar e agroecologia para conseguir esse feito, é preciso que as ações sejam realmente praticadas por todos os segmentos da sociedade. Isso abrange as políticas públicas, o fortalecimento de instituições nacionais e locais e a implementação de práticas sustentáveis no campo, envolvendo múltiplos atores: agricultoras/es, sociedade civil, pesquisadores, setor privado e gestores públicos.
É necessário ainda valorizar e favorecer a permanência nos territórios das comunidades tradicionais, que historicamente defendem e preservam seus biomas e habitats, com práticas sustentáveis de manejo dos recursos naturais para a alimentação das comunidades. Isso é de extrema importância para garantir um equilíbrio ambiental e climático. No Brasil, assim como em diversas partes do mundo, existem diversas iniciativas neste sentido, a exemplo do projeto Territórios da Agricultura.
Desenvolvido pela Evoluir desde 2022, o Territórios da Agricultura já foi implementado de forma gratuita em 10 municípios de oito estados do país, viabilizado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura e pela participação de patrocinadores privados. Seu conteúdo foi elaborado com a metodologia da Aprendizagem Baseada em Projetos e tem a premissa de que a educação deve caminhar junto com as práticas para alcançarmos essa agricultura sustentável e climaticamente inteligente, trabalhando com os recursos e tecnologias que já temos hoje.
Com formações, ações práticas e uma exposição cultural e fotográfica, o Territórios da Agricultura fortalece grupos e coletivos de agricultura familiar, urbana e rural, promovendo o desenvolvimento sustentável e o equilíbrio econômico e social. Tudo começa com o engajamento dos principais atores locais na participação de espaços de troca e diálogo para que, juntos, criem soluções coletivas adequadas à sua realidade. Nessa trilha de conhecimento, surgem novas parcerias e ideias. Todos também têm a oportunidade de aprender mais sobre autogestão, trabalho em equipe, liderança, agrossistemas e cultura do campo, entre muitos outros temas abordados.
Os resultados desse trabalho em cada município têm sido diversos em sua natureza, mas são similares em sua relevância e eficácia para a comunidade, fortalecendo muitas vezes as ações que já existem na cidade com esta temática. Em Camaçari, na Bahia, por exemplo, os participantes criaram a Rede Rural Agroecológica de Camassary, dedicada a integrar conhecimentos e articular diferentes atores sociais, visando a conservação dos recursos naturais, a diversificação produtiva e o fortalecimento socioeconômico do território.
Em Uberlândia, em Minas Gerais, surgiu o Coletivo Mangará, com a proposta de fortalecer a cultura no campo por meio de mutirões nos assentamentos da Reforma Agrária, articulação política e educação. Em Manaus, a opção foi pela construção coletiva do Jardim Alimentício Comunitário Agroecológico (JACA). Além de contribuir para a segurança alimentar das pessoas que estão nos territórios agrícolas no Estado do Amazonas, com o fornecimento de alimentos, são promovidas ainda oficinas e cursos com base no método do sistema PAIS - Produção Agroecológica Integrada e Sustentável, possibilitando sua replicação em diversos locais na área urbana e periurbana da cidade.
Este ano, o projeto está acontecendo em mais duas cidades. Em Montenegro, no Rio Grande do Sul, foi criado o Coletivo Agroecológico Formiga Ibiacy. Já em Piracicaba, em São Paulo, foram selecionadas quatro iniciativas diferentes, fortalecendo ações já existentes no município: Mão na Massa, Tecnologias Sociais, Políticas Públicas e Comunicação.
Em todas essas realizações do Territórios da Agricultura, há um amplo caminho plural de cooperação que foi percorrido, incluindo desde o diagnóstico e a evidência das problemáticas, até a clareza sobre as possibilidades de atuação do grupo. Fica evidente que problemas complexos como a fome e os impactos climáticos só podem ser resolvidos com uma visão sistêmica e um trabalho coletivo e em rede. Mas é também possível comprovar que existem alternativas a serem adotadas em escala local e a curto prazo, com grande potencial de um efeito multiplicador positivo, habilitado por uma sociedade mais informada, capacitada e engajada no bem comum.
Mariana Monferdini é coordenadora do projeto Territórios da Agricultura na Evoluir. Formada em Gestão Ambiental e Pedagogia, desde 2003 percorre os caminhos da educação ambiental, atuando em projetos socioambientais e articulando temas que dialogam com a preservação socioambiental e a participação cidadã.