Graças à enorme disponibilidade de recursos naturais, o Brasil é o país que apresenta a matriz energética mais diversificada, com quase 83% de sua demanda de eletricidade atendida por fontes renováveis (hidráulica, eólica, biomassa, solar), com cerca de 25% de seu consumo de combustíveis suprido por bioetanol e biodiesel, e com reservas provadas de mais de 13 bilhões de barris de petróleo.
No entanto, o processo que resultou nessa matriz tem uma história bastante complexa, marcada pela posição caudatária do país em relação aos centros hegemônicos do capitalismo mundial, pelo confronto entre opções energéticas defendidas por atores políticos antagônicos e por algumas escolhas de pesado impacto ambiental.
Fruto de mais de dois anos de trabalho, reunindo 29 especialistas, o livro Energy transition in Brazil apresenta, em 15 capítulos, uma visão abrangente do tema: do longo caminho percorrido em busca da autossuficiência energética ao desafio de construir um futuro descarbonizado. Pesquisa de vanguarda em transição energética, combustíveis alternativos e digitalização fazem parte do escopo.
“No contexto da transição energética, há cinco expressões ou palavras-chave iniciadas pela letra ‘D’: diminuição do consumo; descarbonização; digitalização; descentralização; democratização. Esses ‘Ds’ definem as balizas de nosso livro. O primeiro capítulo, que trata do processo histórico que produziu a formação energética atual, embasa todos os demais. Estes trazem reflexões inovadoras sobre geopolítica, tecnologias de baixo carbono, geração de energia a partir do hidrogênio e muitos outros subtemas que compõem o quadro da transição energética brasileira”, diz Drielli Peyerl, coordenadora da obra.
Peyerl é pesquisadora do projeto “Energy transition through the lens of Sustainable Developments Goals – ENLENS” (Transição Energética através da lente dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), desenvolvido na Universidade de Amsterdã (Países Baixos). Também é colaboradora no Instituto de Energia e Meio Ambiente e no Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI), ambos da Universidade de São Paulo (USP).
Ela conta que o livro em pauta, publicado pela Springer, uma editora de renome internacional, é o primeiro em inglês sobre a transição energética no Brasil com o enfoque citado anteriormente. E constitui um dos principais resultados de sua participação no Programa Jovens Pesquisadores da FAPESP. “Com esse auxílio, que se estendeu por quatro anos, eu pude nuclear um grupo de pesquisa em transição energética na USP, o Brazilian Energy Transition [BET], que continua atuante”, conta.
A pesquisadora participou de todos os capítulos do livro, mas dedicou-se especialmente ao primeiro, já mencionado, que trata do processo histórico, em conjunto com dois coautores: Stefania Relva Gomes e Vinicius Oliveira da Silva. “A revisão desse processo proporciona cinco lições importantes, mostrando que: a apropriação dos diferentes recursos energéticos muda de acordo com o contexto do período; o desenho de uma política pública consistente e de longo prazo é fundamental para o desenvolvimento e a inserção de novas tecnologias e fontes de energia nos diferentes setores da economia; a presença e os investimentos do Estado são decisivos para acelerar o processo de construção do setor de energia; a economia global molda diferentes realidades; e a compreensão do contexto histórico contribui diretamente para a perspectiva presente e futura da transição energética em curso no país”, resume.
Peyerl diferencia as transições longas das transições curtas. A primeira grande transição, ocorrida no século 19, foi a da lenha para o carvão como fonte de energia. E essa transição acentuou a então crescente dependência do Brasil em relação à Inglaterra por esse combustível fóssil, uma vez que a baixa qualidade do carvão encontrado no território brasileiro obrigou o país a importar carvão de procedência inglesa. “Junto com a matéria-prima, importou-se também a tecnologia e mão de obra especializada, inclusive para encontrar soluções para o problema do abastecimento interno de combustíveis fósseis”, pontua a pesquisadora.
A primeira termelétrica foi construída no Estado do Rio de Janeiro em 1883, com capacidade instalada de 52 kW. Mas, já em 1901, as hidrelétricas superavam em potência as termelétricas existentes no país. “Podemos considerar que a transição energética do setor elétrico brasileiro, dos combustíveis fósseis para as fontes renováveis, ocorreu no início do século 20”, sublinha Peyerl.
Investimentos maciços em hidrelétricas durante o governo de Juscelino Kubitschek e a construção de obras gigantescas como Itaipu durante a ditadura militar fizeram com que o Brasil ingressasse no século 21 com a predominância quase absoluta da fonte hidráulica no setor elétrico. Esse cenário viria a modificar-se substancialmente, no sentido de uma maior diversidade, nas duas décadas seguintes (veja o gráfico na galeria).
A descoberta de petróleo na Bahia em 1939, meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, inaugurou uma nova etapa na transição energética brasileira. O período seguinte foi marcado pela acirrada disputa político-ideológica entre grupos nacionalistas, que defendiam o monopólio estatal da exploração do petróleo, e simpatizantes do capital estrangeiro, que propunham concessões e associações com as grandes petroleiras norte-americanas e europeias. A frase “O petróleo é nosso”, pronunciada por Getúlio Vargas, transformou-se em palavra de ordem em grandes manifestações públicas. E tudo isso culminou, em 1953, com a criação da Petrobras, monopolizando a pesquisa, a mineração, o refino, o comércio e o transporte de petróleo, xisto e derivados, bem como quaisquer atividades relacionadas ou similares.
“O paradoxal foi que, quando o país finalmente alcançou sua tão esperada autossuficiência em petróleo, em 2010, o mundo já havia ingressado na era de descarbonização”, comenta Peyerl. E acrescenta: “Inicialmente, a falta de recursos fósseis disponíveis era o fantasma da economia brasileira, mas, analisando a história, constatamos, no entanto, que essa carência impulsionou o desenvolvimento de técnicas novas e próprias e o aproveitamento de outros recursos energéticos”.
A pesquisadora enfatiza que “o Brasil enfrenta o desafio de remodelar seu setor energético, contribuindo para uma transição energética de baixo carbono”. Mas, especialmente em relação ao setor de transporte, adverte que “as fontes de transição energética ainda não estão em condições de substituir completamente ou mesmo suplantar os combustíveis fósseis” e que “estes continuarão a ser, por um tempo, um componente importante do planejamento energético brasileiro”.
Mais informações sobre o livro Energy transition in Brazil podem ser obtidas em: https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-031-21033-4#toc.
José Tadeu Arantes Agência FAPESP
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