Tecnologia otimiza geração de energia renovável a partir de bagaço de malte pela indústria cervejeira

Estratégia aumenta a obtenção de metano, que pode ser empregado na própria indústria para gerar eletricidade e calor. Resíduo final ainda serve de fer

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Um trabalho de quatro cientistas do Brasil e dois dos Estados Unidos demonstrou detalhadamente o ganho em energia elétrica e térmica obtido quando bagaço de malte, resíduo abundante na indústria cervejeira, é tratado com ultrassom antes de passar por digestão anaeróbia – processo microbiológico que envolve consumo de matéria orgânica e produção de metano.

O pré-tratamento gerou biogás com 56% de metano, 27% mais do que o obtido sem a aplicação do ultrassom. Após ser purificado em metano, o biogás pode ser usado como biocombustível veicular com pegada de carbono muito baixa quando comparada à de fontes fósseis convencionais. Além disso, com a queima do metano em cogeradores é possível produzir eletricidade e calor para a utilização pela própria indústria cervejeira. Já o resíduo final do processo resulta em biofertilizantes, que podem ser aplicados para substituir os fertilizantes minerais. Os detalhes da metodologia foram descritos no Journal of Cleaner Production.

O processo inovador foi desenvolvido no Laboratório de Bioengenharia e Tratamento de Águas e Resíduos (Biotar) da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (FEA-Unicamp). A líder do grupo de pesquisa, Tânia Forster-Carneiro, coordena um projeto apoiado pela FAPESP.

Ela explica que, atualmente, as indústrias de alimentos possuem estação de tratamento de águas residuárias, algo determinado por lei. Porém, nem sempre existe o tratamento de resíduos sólidos orgânicos que, geralmente, são enviados para aterros controlados/sanitários ou, alternativamente, destinados à ração animal. “As pesquisas que visam a valorização de resíduos sólidos orgânicos são valiosas para a indústria e também para a sociedade. Nesse artigo, especificamente, aplicamos um pré-tratamento de ultrassom – uma tecnologia ainda incipiente, usualmente aplicada em escala laboratorial – e com isso obtivemos maior produção de metano. Os resultados foram muito bons”, comemora a pesquisadora.

A pós-doutoranda Luz Selene Buller e o doutorando William Sganzerla, ambos bolsistas da FAPESP, participam do grupo de pesquisa.

Sganzerla explica que os resíduos da indústria cervejeira são lignocelulósicos (compostos por lignina, celulose e hemicelulose) e, portanto, a parede celular é de difícil acessibilidade para os microrganismos que participam da digestão anaeróbia. “Ao alimentar um reator de digestão anaeróbia com matéria-prima lignocelulósica, o rendimento da produção de metano será baixo, visto que os microrganismos não irão consumir essa biomassa. Por isso é necessário aplicar um pré-tratamento para melhorar a degradação da biomassa.”

O trabalho também avaliou as rotas de recuperação de energia em todo o processo, concluindo que a eletricidade produzida pelo biogás compensou 80% da necessária para o pré-tratamento com ultrassom e para a digestão anaeróbia; gerando ainda um excedente 50% superior em energia térmica em comparação com o excedente de calor que seria obtido no processo sem aplicação do ultrassom.

“A barreira tecnológica é aplicar um pré-tratamento sustentável que consuma pouca energia. Um pré-tratamento com alto consumo energético não é viável para aplicações em escala industrial. Assim, a eletricidade gerada pela combustão do biogás será utilizada para o ultrassom. Já o calor produzido pode ser utilizado na indústria para os diversos processos que necessitam de energia térmica. Tudo isso segue os princípios de economia circular para a produção de alimentos com baixa emissão de carbono”, detalha Sganzerla.

Buller ressalta que a reciclagem de nutrientes e a geração local de energia de fontes renováveis são relevantes estratégias para o desenvolvimento sustentável e a descarbonização da produção de alimentos.

Cálculos detalhados

Segundo Forster-Carneiro, um fator determinante para que o artigo chamasse a atenção da comunidade acadêmica foi o nível de detalhamento nas medições do trabalho. “Nós fizemos todos os cálculos do balanço de massa e energia de todos os fluxos de entrada e saída. Mostramos, em detalhes, que para cada tonelada de bagaço de malte é possível produzir 0,23 megawatt-hora em energia elétrica.”

O estudo também apresenta o potencial de mitigação de gases de efeito estufa a partir da geração de energia renovável. A cientista conta que, há mais de cinco anos, tem trabalhado em colaboração com Michael Timko, docente do Worcester Polytechnic Institute (Massachusetts, Estados Unidos), também especialista em valorização de resíduos e coautor do artigo. “O trabalho ficou ótimo, pois poucas são as pesquisas que detalham os cálculos de produção de energia a partir do metano.”

Este experimento, entre outros, surgiu da boa relação da FEA-Unicamp com a indústria cervejeira, refletida em visitas técnicas e doação dos resíduos sólidos. Essa unidade cervejeira produz de 120 a 250 toneladas de bagaço de malte por semana. “Atualmente a fábrica não faz revalorização desse resíduo, simplesmente fazem a doação para alimentação animal. Entretanto, eles poderiam tratar o bagaço ao mesmo tempo em que produzem energia”, diz Forster-Carneiro.

Nesse contexto, Sganzerla ressalta os efeitos iminentes da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305, de 2010). “Vai chegar o momento em que todas as indústrias deverão, obrigatoriamente, tratar os resíduos que geram. E vão precisar lançar mão das tecnologias disponíveis. Tecnicamente já é possível fazer. Em nosso estudo, apontamos diversas possibilidades. Hoje não há indústrias que façam esse tipo de tratamento em larga escala porque, por mais que a tecnologia de digestão anaeróbia exista e seja viável para resíduos líquidos e sólidos, para resíduos sólidos e lignocelulósicos estudos mais aprofundados ainda são requeridos.”

Rico em nutrientes

O Brasil está entre os cinco maiores produtores de cerveja do mundo. Em 2019 foram fabricados 14 bilhões de litros da bebida, aponta o artigo. A produção de 100 litros de cerveja gera aproximadamente 20 quilos de bagaço de malte. Assim, cerca de 2,8 milhões de toneladas de bagaço de malte são gerados anualmente no Brasil. A equipe de Forster-Carneiro já obteve em 2020 uma patente da aplicação desse resíduo orgânico em reatores anaeróbios aplicável à própria estação de tratamento de águas residuárias da indústria cervejeira.

Em artigo anteriormente publicado no Journal of Cleaner Production, em março de 2021, Forster-Carneiro, Sganzerla, Buller e Solange Mussatto, do Departamento de Biotecnologia e Biomedicina da Universidade Técnica da Dinamarca, fazem uma detalhada avaliação das vantagens econômicas da valorização de resíduos, incluindo a geração de fertilizantes.

“O processo de digestão anaeróbia trata resíduo com alta carga orgânica, consequentemente gera nutrientes e, dentro do reator, sobra um biodigerido – fração sólida basicamente composta por material lignocelulósico tratado e rico em nitrogênio, fósforo, potássio e outros minerais. No caso do bagaço de malte, existe muito nitrogênio e a quantidade de proteína vai ser alta, viabilizando o uso desse resíduo como biofertilizante, podendo substituir o uso de NPK [fertilizante composto por nitrogênio, fósforo e potássio] mineral”, explica Sganzerla.

A equipe de Forster-Carneiro também vem pesquisando o pré-tratamento hidrotérmico do bagaço de malte. “Colocamos o resíduo em um reator que, em certas condições de temperatura e pressão, hidrolisa a biomassa [promove a quebra das moléculas] produzindo um hidrolisado [líquido] com nutrientes solúveis, o que é muito benéfico para os processos fermentativos, mas esse processo ainda requer estudos mais aprofundados para proporcionarmos uma solução eficiente e sustentável para o tratamento de resíduos lignocelulósicos”, diz Sganzerla.

 

O artigo Ultrasonic pretreatment of brewers’ spent grains for anaerobic digestion: Biogas production for a sustainable industrial development pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0959652622014135?via%3Dihub



Ricardo Muniz | Agência FAPESP


Foto Biotar FEA Unicampo

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