Especialista da ONU defende inovação para promover uso eficiente da terra e superar a fome

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Mais de 800 milhões de pessoas são afetadas pela fome ou pela subnutrição no mundo. E a crise climática poderá levar outros 100 milhões a essa condição. A deficiência em micronutrientes afeta mais de 2 bilhões de pessoas. E um em cada dez habitantes do planeta consome comida insalubre.


Esse quadro alarmante está se agravando, a despeito do extraordinário avanço tecnológico e do enorme desperdício de alimento. E apresenta, como outra face da mesma moeda, a acelerada destruição do meio ambiente.


Os dados foram apresentados pelo cientista Joachim von Braun, professor no Centro de Pesquisa para o Desenvolvimento da Universidade de Bonn, na Alemanha, e presidente da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano. Braun, que atuou como presidente do grupo científico da Cúpula de Sistemas Alimentares das Nações Unidas em 2020 e 2021, desenvolveu o tema “aspectos econômicos da degradação da terra e o verdadeiro custo da comida” em conferência promovida pela FAPESP.


O evento on-line, denominado “O uso da terra e a produção de alimentos”, integrou o ciclo Conferências FAPESP 60 Anos e pode ser assistido pelo canal da Agência FAPESP no YouTube.


Além de Braun, participaram do encontro Mariangela Hungria, pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e Laerte Guimarães Ferreira, professor titular da Universidade Federal de Goiás (UFG).


Braun apresentou um balanço do verdadeiro custo dos alimentos. Enquanto o valor computado pelo mercado é de US$ 9 trilhões, o custo real é mais de três vezes superior – da ordem de US$ 28 trilhões. Isso porque o mercado não contabiliza os custos decorrentes da degradação ambiental, dos impactos provocados pelo consumo de alimentos insalubres sobre a vida e a saúde humanas e outros.


“Os preços do mercado não levam em conta os benefícios proporcionados pela comida saudável nem os malefícios causados pela comida insalubre. Os lucros dos negócios não refletem os valores somados ou subtraídos à sociedade. Os produtos internos brutos [PIBs] associados ao sistema de alimentos não refletem a contribuição ao bem-estar”, disse.


Segundo o especialista, a Cúpula de Sistemas Alimentares das Nações Unidas deixou claro que ações transformativas são imprescindíveis para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela instituição global. E definiu cinco diretrizes para essas ações: nutrir todas as pessoas; impulsionar soluções baseadas na natureza; promover meios de subsistência equitativos, trabalho decente e comunidades “empoderadas”; construir resiliência a vulnerabilidades, choques e estresses; acelerar os meios de implementação.


Braun discorreu também sobre as sete proposições em ciência e inovação apresentadas à Cúpula por seu grupo de trabalho. A lista é encabeçada pela demanda de um pacote de políticas específicas e inovações institucionais para acabar com a fome e aumentar a disponibilidade e acessibilidade de dietas saudáveis e alimentos nutritivos. E de iniciativas capazes de reduzir o risco de sistemas alimentares e fortalecer a resiliência, em particular de sistemas alimentares neutros em relação ao clima, sistemas alimentares positivos em relação ao clima e sistemas alimentares resilientes ao clima.


E segue com a reivindicação de inovações baseadas em ciência e tecnologia para promover o uso eficiente da terra, o crédito e o trabalho justos; favorecer a saúde humana, a produtividade do sistema e o bem-estar ecológico; proteger os solos e a água, a base genética agrícola e a biodiversidade; implementar a pesca sustentável, a aquicultura e a proteção de áreas costeiras e oceanos; e desenvolver inovações digitais para maior eficiência e inclusão de sistemas alimentares e comunidades rurais.


Enfocando a agricultura brasileira, e mais especificamente a produção e a produtividade agrícolas, Mariangela Hungria falou do grande potencial do país como produtor mundial de alimentos em contraste com sua dependência em fertilizantes. O Brasil importa 85% do nitrogênio, fósforo e potássio empregados na agricultura.


“A dependência externa é enorme e tem crescido nos últimos anos. Além disso, os fertilizantes apresentam baixa eficiência, grande parte deixando de ser aproveitada pelas plantas e se perdendo no solo. Outro problema é que tanto a agricultura como as mudanças no uso da terra são os componentes que mais afetam a emissão de gases de efeito estufa. Um quilo de nitrogênio utilizado provoca uma emissão de 10,7 quilos de CO2 equivalente”, afirmou a pesquisadora.


A grande alternativa, segundo Hungria, é o uso de microrganismos promotores do crescimento de plantas, capazes de substituir, total ou parcialmente, os fertilizantes químicos, com evidentes vantagens econômicas, ambientais e sociais. “Temos décadas de investimento em pesquisas com microrganismos”, informou a pesquisadora, que deu vários exemplos de bactérias que podem ser empregadas, isoladamente ou em sistema de coinoculação, como alternativas aos fertilizantes químicos.


Uma situação crítica do campo brasileiro são as pastagens degradadas, que ocupam área quase três vezes maior do que a das lavouras, correspondente a 21,2% de todo o território nacional. “Temos uma combinação de bactérias que podem aumentar a produtividade dessas pastagens, liberando-as para a agricultura, sem que seja preciso derrubar nenhuma árvore mais”, enfatizou Hungria.


O tema das pastagens degradadas voltou na fala de Laerte Guimarães Ferreira, o último conferencista do painel. O pesquisador afirmou que aproximadamente 35% do território nacional já foi antropizado, isto é, transformado pela ação humana. E que um terço dessas mudanças ocorreu nos últimos 37 anos, configurando um ritmo de conversão sem paralelos no mundo. “Cerca de 80% de todas as emissões de gases de efeito estufa no Brasil se devem a mudanças no uso da terra e das florestas e à agropecuária, estando o país entre os cinco maiores emissores de gases de efeito estufa”, disse.


Criador e coordenador do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás (Lapig), uma das principais referências em processamento, análise e distribuição de dados de satélites no país, Ferreira lembrou que cerca de 90% de tudo o que já foi desmatado no Brasil, desde o início da colonização até os dias atuais, em algum momento foi pastagem. E grande parte das pastagens encontra-se atualmente degradada.


Mas sugeriu que cenários desfavoráveis podem ser modificados por meio de políticas públicas, apresentando dados comparativos de 2010 e 2018 para mostrar o possível efeito do Plano de Agricultura de Baixo Carbono na recuperação de pastagens degradadas. Com linha de crédito específica para financiar investimentos capazes de contribuir para a redução de impactos ambientais na atividade agropecuária, o Plano ABC, como foi apelidado, entrou em vigor em 2011. “Com base em dados de satélites, chegamos a indícios robustos de que, entre 2010 e 2018, cerca de 27 milhões de hectares de pastagens deixaram de ser degradados”, informou Ferreira.


A 10ª Conferência FAPESP 60 Anos foi aberta por Ronaldo Aloise Pilli, vice-presidente do Conselho Superior da FAPESP. E teve a moderação de Carlos Eduardo Pellegrino Cerri, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq-USP).


O evento pode ser assistido na íntegra em:  www.youtube.com/watch?v=PDOFkge3C3M.

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