Por Thiago Fernando Ciola
Outubro de 2022 – Um dos principais fatores de sobrevivência e de crescimento das usinas que atuam no setor sucroalcooleiro é a contratação de terras para o cultivo de cana-de-açúcar, seja em áreas próprias ou de terceiros. Isso porque a produção de açúcar, etanol e bioenergia, e dos próprios subprodutos gerados como o bagaço, a torta de filtros, a vinhaça e outros que são transformados em novos produtos quando tratados, depende da matéria prima proveniente desta planta gramínea para gerar benefícios econômicos futuros e contínuos.
Obviamente, a capacidade máxima produtiva da indústria de cada usina é determinante para a definição da quantidade de áreas necessárias a serem contratadas. Do mesmo modo, projetos de investimentos de médio e longo prazos, com desígnio de aumentarem a produtividade, são imprescindíveis, uma vez que alicerçam e direcionam a elaboração dos planos de contratação de terras, tanto para suprir às demandas projetadas nos programas de expansão como para atender o volume de moagem ampliado gradualmente.
Nesse contexto, o processo de prospecção, contratação, produção e obtenção da matéria prima é fundamental à manutenção e ao crescimento da indústria canavieira. Usualmente, a contratação de terras de terceiros acontece por meio de três modalidades distintas: arrendamento rural, parceria agrícola e compra de cana-de-açúcar de fornecedor, cada qual com suas particularidades e riscos. As duas primeiras, que estão disciplinadas no Estatuto da Terra, diferem em termos de natureza e tributação.
No caso da parceria agrícola, a essência da operação é a partilha dos frutos, produtos, lucros ou dos riscos, de forma que tanto o proprietário como o parceiro ficam sujeitos aos riscos, como na hipótese de casos fortuitos e de força maior. Já no arrendamento rural, a essência da operação é a cessão da terra mediante o pagamento de um valor fixo não atrelado à quantidade produzida, e tipificado em contrato, cujo conteúdo garante o uso pelo arrendatário da propriedade rural para exploração.
A compra de cana-de-açúcar de fornecedores, por sua vez, corresponde a uma operação comum de compra e venda, cujo comprador não participa do processo produtivo. Normalmente, essa operação é realizada de duas formas: compra de cana posta na esteira, na qual o fornecedor (proprietário da terra), além da produção, tem a responsabilidade de efetuar a colheita e entregá-la no parque industrial do comprador. Já o segundo modelo se refere à compra de cana em pé no campo, cuja responsabilidade pela colheita e transporte é do comprador. Ou seja, nesta categoria, o fornecedor apenas executa o processo produtivo: preparo, plantio e cultivo da cana-de-açúcar.
A contratação de terras, bem como, a compra de cana-de-açúcar de fornecedores, independente da modalidade acordada, envolve valores financeiros expressivos e implica no estabelecimento de relações que se estreitam e, consequentemente, acabam ensejando riscos que precisam ser monitorados e acompanhados de perto pela gestão das companhias que operam no setor sucroalcooleiro. Por essa razão, a auditoria interna é fundamental para mensurar a efetividade dos controles correlacionados, fornecer subsídios e insights acerca da maturidade do processo e, principalmente, avaliar se as diretrizes organizacionais estão sendo observadas no fluxo das contratações.
Como o risco de fraude frequentemente é crítico, o processo de contratação de terras deve ser mapeado via fluxos, além de contemplar a elaboração de uma matriz de riscos e controles especifica, que abranja a mensuração sobre a interconectividade dos riscos, frente a outros processos de negócio. As contratações efetuadas, por sua vez, precisam ser auditadas anualmente em razão dos contratos firmados serem precificados com base na qualidade do ambiente. Inclusive, no tocante às parceiras agrícolas, é costume serem pactuados contratos de compra da parcela de cana pertencente ao proprietário da terra.
Além da avaliação de qualidade do ambiente de produção das terras contratadas, também existem outras questões importantes: subarrendamentos, cessão de parcerias agrícolas, comissões (pagamentos pela intermediação de terceiros na negociação de terras), pagamentos de luvas (pagamentos a título de indenização por melhorias efetuadas na área de produção quando há transferência da terra de um produtor a outro), concessão de incentivos de produção, doações, concessão de adiantamentos, emissão de carta de crédito como penhor de cana e concessão de benefícios diversos que devem ser objeto de auditoria.
Nesse sentido, fica claro o papel da auditoria interna no processo de contratação de terras e na compra de cana-de-açúcar, que é mensurar, por meio de exames, análises, testes e avaliações independentes, a efetividade dos controles implantados para garantir a integridade e a eticidade das negociações e contratações. Essa é a base para concluir se os interesses da companhia estão sendo preservados, observados e respeitados pelos colaboradores que a representam e, concomitantemente, dar visibilidade aos achados de auditoria para que as ações corretivas sejam implementadas com a finalidade de sanar deficiências, fragilidades ou vulnerabilidades averiguadas.
Para que a geração de valor seja realmente perceptível do ponto de vista organizacional, é imprescindível que a Auditoria Interna seja capaz de levantar os fatos acontecidos com agilidade, e, através deles, antever situações futuras mediante a identificação de riscos emergentes. De maneira semelhante, para ser viável a mitigação do risco de fraude, é necessário transcender a rotina usual adotada de avaliação de contratos e pagamentos (diretos e obrigações), no sentido dos procedimentos serem expandidos para: vistorias in loco das terras contratadas, confirmação sobre a qualidade destas, pesquisa de vínculos entre terceiros e os colaboradores da organização; aferição quanto a possível descaracterização das parcerias agrícolas, entre outros.
No que tange à avaliação específica sobre a eventual descaraterização das parcerias agrícolas, é vital que a auditoria interna, ainda que apoiada por especialistas, analise se as operações firmadas de parceria não possuem natureza embutida de arrendamentos rurais, mesmo que estas correspondam a um risco assumido pela corporação, uma vez que, a jurisprudência administrativa e jurídica há tempos assentou o entendimento de que o regime de tributação aplicado independe do nome do contrato, mas, sim, da essência da relação jurídica estabelecida entre as partes. Além disso, havendo conflito entre forma e substância essa última sempre prevalecerá.
Desta forma, além das questões internas de cumprimento das regras instituídas e da avaliação quanto ao risco de fraude, também se atribui à auditoria interna a função de verificar o cumprimento dos normativos fiscais e tributários, associados ao processo de contratação de terras, tendo em vista que a conformidade legal é um requisito básico que deve permear todas as atividades de auditoria. Nesse âmbito, fica claro que cada vez mais as expectativas atribuídas à auditoria interna são grandes e vão sendo ajustadas conforme as necessidades de cada companhia.
Garantir a integridade dos processos organizacionais e corroborar a eticidade nos negócios praticados são questões fundamentais para todas as companhias que atuam no ramo da agroindústria, sendo inevitáveis para aquelas que objetivam combater perdas e fomentar a cultura de riscos e controles. Uma organização que não tem visibilidade sobre a realidade dos seus processos internos não está apta a gerenciar riscos e a lidar com as constantes imprevisibilidades do negócio.
Ter uma área de auditoria interna independente não é apenas cumprir com um requisito de governança corporativa, é uma questão de sobrevivência para a continuidade operacional. Por lógica, monitorar e auditar o processo de contratação de terras ou de compra de cana-de-açúcar, que é a base central que possibilita o funcionamento das usinas, não é apenas indispensável, é obrigatório para assegurar a respectiva efetividade e retidão.
Thiago Fernando Ciola é consultor master da Protiviti, empresa especializada em soluções para gestão de riscos, compliance, ESG, auditoria interna, investigação, proteção e privacidade de dados.