A Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (CONTAR) e a Oxfam Brasil acabam de enviar ao Governo Federal um conjunto de propostas visando o respeito aos direitos humanos e a melhoria das condições de trabalho no setor agrícola, para que sejam integradas ao Plano Safra 2024/2025.
O Plano Safra representa cerca de um terço de todo o crédito para agricultura e é a principal fonte individual de recursos para o setor. Em 2023 aproximadamente 270 bilhões de reais foram destinados. Como política pública, o Plano Safra tem a capacidade de estabelecer tendências e prioridades para a agropecuária.
No entanto, as entidades chamam atenção para uma contradição histórica. Enquanto tradicionalmente o Plano Safra apoia a infraestrutura produtiva, as práticas de negócio e práticas agrícolas, e recentemente práticas ambientalmente sustentáveis, a parte social e de respeito aos direitos humanos dos trabalhadores assalariados rurais não foi contemplada.
Em 2023, o PIB da agropecuária cresceu cerca de 15%, um recorde histórico. Porém, a situação dos trabalhadores assalariados rurais não acompanhou esse desempenho e ainda está distante das condições ideais. Ano passado os casos de trabalhadores resgatados de trabalho análogo ao escravo atingiram o patamar mais alto desde 2009, sendo que o trabalho rural lidera o número de resgates (80%). As atividades rurais com maior número de resgatados são exatamente duas das mais importantes culturas agrícolas de exportação, café e cana-de-açúcar.
No mundo, e em especial na Europa, legislações têm sido aprovadas sobre a responsabilidade das empresas com relação ao respeito aos direitos humanos em suas cadeias de fornecimento, o que aumentará a pressão sobre a agricultura brasileira.
As propostas da Contar e da Oxfam Brasil buscam que o Plano Safra assuma um papel protagonista na melhoria geral das condições de trabalho no campo e na prevenção de casos de trabalho análogo ao escravo.
Os trabalhadores assalariados rurais estão entre os mais pobres do país. De acordo com a Contar, esses trabalhadores enfrentam taxas de informalidade acima de 60%. Segundo a Oxfam Brasil, eles vivem situação de alta vulnerabilidade devido ao emprego temporário como safristas e por comumente viverem nas fazendas.
De acordo com Gabriel Bezerra, presidente da Contar, “é importante que todas as políticas voltadas para a agropecuária no Brasil incluam medidas para a melhoria das condições de trabalho no campo”. Para Gustavo Ferroni, coordenador de justiça rural e desenvolvimento da Oxfam Brasil, “se a agricultura brasileira não superar os problemas históricos com relação a situação dos trabalhadores, terá problemas para acessar os principais mercados globais”.
Ambas as entidades reconhecem que existem boas práticas com relação as condições de trabalho no campo, porém essas seriam limitadas e os produtores que as adotam se veem em desvantagem com relação aos outros. Segundo Gabriel Bezerra “as supostas justificativas de alto custo para investir nos trabalhadores não farão mais sentido com a adoção de linhas de crédito específicas para isso no Plano Safra”. Para Gustavo Ferroni “a tendência é que as exigências de direitos humanos para as empresas só aumentem e se a agricultura brasileira não mudar, ficará para trás”.
Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Assalariados Rurais-Contar
A Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais - CONTAR é uma entidade sindical de grau superior, representante dos quatro milhões de empregados rurais nas mais diversas cadeias produtivas brasileiras. Tem como bandeiras de luta o trabalho decente, formalidade das relações de trabalho, negociação coletiva e salário digno.
Oxfam Brasil
A Oxfam Brasil é uma organização da sociedade civil brasileira, sem fins lucrativos e independente, criada para a construção de um Brasil com mais justiça e menos desigualdades. Atuamos em quatro áreas temáticas: Justiça Rural e Desenvolvimento, Justiça Social e Econômica, Justiça Racial e de Gênero e Justiça Climática e Amazônia. Fazemos parte de uma rede global, a Oxfam, que tem 21 membros que atuam em 81 países pelo mundo, por meio de campanhas, programas e ajuda humanitária. Para nós, desafiar as desigualdades é dar espaço, voz e poder às pessoas para que possam exercer seus direitos plenamente, para contribuir com a construção de um país mais justo e menos desigual.
Assunto: Encaminha propostas de direitos humanos a serem consideradas no Plano Safra 2024/2025.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Assalariados e Assalariadas Rurais – CONTAR entidade sindical de grau superior representante dos quatro milhões de empregados rurais nas mais diversas cadeias produtivas brasileiras, e a Oxfam Brasil uma organização da sociedade civil brasileira, sem fins lucrativos e independente, parte de uma rede global Oxfam, que para a construção de um Brasil com mais justiça e menos desigualdades, vem respeitosamente encaminhar ofício com propostas ao Plano Safra 2024/2025 construídas coletivamente para esse fim.
Notavelmente o Plano Safra 2023/2024 trouxe importantes avanços em relação ao apoio para as práticas ambientalmente sustentáveis no setor agropecuário, fortalecendo a pauta ambiental frente a esse importante plano de financiamento. Ocorre que a sustentabilidade ambiental deveria caminhar junto com o respeito e cumprimento dos direitos humanos, pauta igualmente importante para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil.
A sustentabilidade é um conceito socioambiental e como tal deve incorporar um olhar sistêmico onde o respeito ao meio ambiente caminha junto com o respeito aos direitos humanos. Nessa seara contextualizamos a situação dos trabalhadores empregados rurais como um grande desafio para a garantia dos direitos humanos no campo e ameaça a sustentabilidade da produção agropecuária.
Tal categoria soma o universo de quatro milhões de pessoas empregadas no setor produtivo do agronegócio, estando presente nas principais cadeias produtivas que abastecem o mercado interno e externo. Apesar do desenvolvimento e riqueza acumulado por este setor econômico, os trabalhadores enfrentam problemas estruturais como alta informalidade, baixos salários, acidentes e doenças ocupacionais e submissão ao trabalho em condição análogo ao de escravo.
Desde a publicação dos Princípios Orientadores da Organização das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, em 2011, as expectativas sociais globais sobre a responsabilidade das empresas com relação aos direitos humanos mudaram. Hoje a cobrança pela responsabilidade ativa das empresas com suas cadeias de fornecimento é amplamente aceita e a atual tendência internacional é de regulamentação dessa responsabilidade por meio de medidas legislativas e administrativas.
A França e a Alemanha já aprovaram legislações sobre devida diligência em direitos humanos, a União Europeia recentemente aprovou diretivas sobre desmatamento (que inclui temas de questões trabalhistas), sobre trabalho escravo (que bane produtos e produtores) e sobre obrigações de devida diligência em sustentabilidade corporativa. Tais esforços podem trazer impactos para os diferentes setores da agropecuária brasileira que não estiverem adequados com relação a sua responsabilidade empresarial com os direitos humanos, em especial os direitos fundamentais do trabalho. O diferencial competitivo não está mais unicamente ligado ao preço e qualidade dos produtos, mas também deve levar em conta considerações de respeito aos direitos humanos no processo produtivo.
Parte dos problemas de descumprimento aos direitos de trabalhadores empregados rurais está relacionada a falta de boas condições de trabalho em termos de infraestrutura, equipamentos e maquinário. As más condições de trabalho e a falta de infraestrutura adequada muitas vezes estão entre os elementos que contribuem para os casos de trabalho análogo ao escravo no Brasil, além da violação sistémica de normas de saúde e segurança no trabalho rural previsto no ordenamento jurídico brasileiro.
Em 2023, os casos de resgates de trabalhadores em condições análogas às de escravidão bateram recorde, sendo os rurais, cerca de 80% desse montante. A situação dos trabalhadores empregados rurais enfrenta desafios históricos que vem desde a escravidão, perpassa a sua exclusão da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o estabelecimento de um regime com menos garantias que os trabalhadores urbanos em 1973. Foi apenas na Constituição de 1988 que os trabalhadores rurais foram colocados em paridade com os trabalhadores urbanos.
Esse legado histórico e a persistência de violações de direitos dos trabalhadores empregados rurais coloca em xeque o setor agropecuário brasileiro nos olhos do Brasil e do mundo. Todas as políticas públicas voltadas para a agropecuária no Brasil devem buscar incorporar elementos que contribuam para a superação desses desafios.
É comum que as entidades sindicais e de defesa de direitos no campo escutem do setor produtivo que o investimento em infraestrutura para o trabalho tem um alto custo e pouco incentivo do governo brasileiro, fazendo com que parte desses empregadores não tenham condições de se adequarem as normas exigidas ou criar mecanismos para burlar a lei.
Nesse sentido, a CONTAR e a OXFAM BRASIL vem propor que sejam incluídas linhas de financiamento especificamente voltadas para a garantia de direitos trabalhistas e boas condições de trabalho no campo no Plano Safra 2024/2025. Chama a atenção que o Plano Safra tradicionalmente ofereça linhas de crédito para benfeitorias e construção de infraestrutura nas fazendas, como silos, armazéns e outras, mas que não faça o mesmo para infraestruturas relacionadas ao bem-estar e a saúde e segurança do empregado rural, como bons alojamentos, refeitórios e áreas de vivência.
O Plano Safra deve ter como base a Norma Regulamentadora nº 31, que dispõe sobre segurança e saúde no trabalho, na agricultura, na pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura (NR 31), aprovada por meio da Portaria nº 86, de 03 de março de 2005, e incorporar medidas para fomentar que o empregador rural ofereça condições sanitárias e de conforto ao trabalho rural. A NR 31 demanda que os empregadores rurais invistam na construção de instalações sanitárias, locais para refeição, alojamentos, local adequado para o preparo de alimentos e lavanderias.
Outros elementos necessários para a adequação das condições de trabalho são veículos adequados para o transporte de trabalhadores e infraestrutura móvel para prover as condições adequadas nas frentes de trabalho (refeitórios, banheiros etc.). Cabe ressaltar que a NR 31 é uma norma reconhecida internacionalmente e que foi construída e revisada com participação social tripartite.
É importante reconhecer que existem boas práticas com relação as condições de trabalho e infraestrutura dos trabalhadores empregados rurais com casos inclusive de alojamentos com ar-condicionado, alimentação de alta qualidade e variada, transporte gratuito em diferentes horários e até pontos de descanso na frente de trabalho com internet wifi e ar-condicionado. Porém, infelizmente, esses casos são a minoria, e esses empregadores não recebem apoio para tal, o que os coloca em uma desvantagem competitiva com relação aos demais empregadores. As barreiras para investir no bem-estar do trabalhador empregado rural vão além da irresponsabilidade social e do racismo (a coisificação do trabalhador rural), e incluem a falta de financiamento. É contraditório que o Brasil ofereça financiamento para a estrutura onde ficarão os grãos, mas não faça o mesmo para a infraestrutura onde ficarão os trabalhadores.
Neste sentido propomos que o Plano Safra 2024/2025 incorpore em suas linhas de financiamento:
Transporte
A criação de uma linha de financiamento para aquisição de veículos novos e apropriados para transporte dos trabalhadores.
A utilização de veículos antigos, improvisados e irregulares é uma situação constante no campo. Essas práticas colocam os trabalhadores em risco diariamente, podendo levar a morte como o acidente fatal ocorrido na Usina União, no Pernambuco, em janeiro de 2022. Além disso, não são incomuns os casos em que empregadores obrigam os trabalhadores a caminharem longas distâncias até as frentes de trabalho.
Moradia
A criação de uma linha de financiamento para a construção e reforma de casas e alojamentos de trabalhadores permanentes e safristas que vivem nas fazendas.
A moradia inadequada é um dos principais problemas encontrados com trabalhadores dormindo no chão, em redes e em acomodações superlotadas, ou que misturam homens, mulheres e famílias, o que é proibido pela norma trabalhista. A situação é de especial preocupação para os trabalhadores safristas.
Locais fixos para refeição
A criação de uma linha de financiamento para a construção e reforma de refeitórios, locais de preparo da alimentação e de armazenamento adequado dos alimentos quando os trabalhadores trazem de suas casas.
É muito comum escutar de trabalhadores empregados rurais relatos sobre os alimentos trazidos de casa que perderam (azedaram) pois não tinham local adequado para serem acondicionados, ou relatos sobre trabalhadores realizando suas refeições sentados no chão, em locais onde os agrotóxicos são guardados etc.
Instalação sanitária fixa
A criação de uma linha de financiamento para a construção e reforma de instalações sanitárias que incluem banheiros, locais para lavar as mãos, locais para tomada de banho (em especial para os trabalhadores que lidam com agrotóxicos).
Um dos principais problemas de infraestrutura encontrados são os banheiros. Além da falta de condição adequada, existem problemas como longas distâncias, e o agravante de não disponibilizar estruturas separadas para homens e mulheres criando as condições para constrangimentos e aumento o risco de violência sexual.
Ponto de descanso fixo
A criação de uma linha de financiamento para a construção e reforma de pontos de descanso nas frentes de trabalho. Os locais devem necessariamente incluir pontos de água fresca e potável para hidratação dos trabalhadores.
Nas frentes de trabalho é incomum, salvo nos casos dos empregadores mais avançados, encontrar pontos de descanso fixos, ventilados e com sombra e outras comodidades. Locais que seriam adequados para que os trabalhadores pudessem realizar seus intervalos de maneira digna.
Equipamentos móveis: refeitório móvel, instalação sanitária móvel
A realidade do trabalho assalariado rural no Brasil traz desafios logísticos para garantir as condições adequadas de trabalho. Dada as distâncias e rotatividade de local das turmas de trabalhadores, soluções móveis se fazem necessárias. O mais comum são as instalações sanitárias, como banheiro, locais para lavar a mão, trocar de roupa etc. Outras necessidades incluem os locais móveis para refeição e descanso nas frentes de trabalho.
Dada a rotatividade do local de trabalho nas fazendas e as grandes distâncias que isso pode acarretar, muitas vezes é necessário que a infraestrutura vá até a frente de trabalho e acompanhe as turmas de trabalhadores.
Considerações finais
A incorporação de linhas de financiamento voltadas para a garantir das melhores condições de trabalho no campo é um passo necessário ao Plano Safra. A sua não incorporação manterá uma situação em que é dada maior prioridade para a infraestrutura produtiva, voltada aos grãos, insumos agrícolas e às práticas agrícolas de plantio do que em relação às condições de trabalho dos trabalhadores assalariados rurais.
A prevenção ao trabalho análogo ao escravo e as demais violações de direitos dos trabalhadores assalariados rurais deve começar com as políticas de apoio e fomento à agricultura, sendo o Plano Safra a política ideal e prioritária para tal iniciativa.
A CONTAR e a OXFAM BRASIL têm acúmulo suficiente para subsidiar tal construção e se colocam a disposição para diálogos, reuniões e construção de parcerias e subsídios que fundamentem as propostas aqui apresentadas.
Certos de contar com vossas atenções, nossos sinceros agradecimentos.
GABRIEL BEZERRA SANTOS
Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Assalariados Rurais
GUSTAVO PAULILLO FERRONI
Coordenador de Justiça Rural e Desenvolvimento da Oxfam Brasil